quinta-feira, 10 de abril de 2014

The Walking Dead, Hobbes, Relações Internacionais e Teoria dos Jogos!

(naturalmente, tem alguns spoilers aí embaixo)

Eu sempre tive um preconceito com The Walking Dead, não me perguntem o porquê. É daqueles casos que as pessoas falam tanto que você acaba criando birra sem motivo nenhum. Recentemente, porém, resolvi começar a ver essa série que as pessoas tanto falavam, tentando não criar grandes expectativas. Vi a (breve) primeira temporada e estava na metade da segunda quando quase desisti. A série era uma merda.

Ok, não uma merda, mas estava longe de ser boa, muito menos a maravilha que eu ouvia as pessoas dizendo. Personagens extremamente exagerado, caricatos e, sejamos realistas, burros. Cada ação dos personagens me irritava profundamente, e as interações entre eles eram forçadas ao ponto de serem incompreensíveis. Era impossível se identificar com qualquer um deles ou com qualquer coisa que a gente via eles fazendo.

Felizmente, porém, eu resolvi seguir em frente pois, ainda que não estivesse exatamente gostando, a série era divertida e muito bem feita e filmada. Era um bom entretenimento. Bobo, inofensivo, mas ok.

Foi nesse momento que a série teve uma virada brusca em seu direcionamento que finalmente acabou me conquistando. Isso se deu quando os antagonistas deixaram de ser os zumbis. Isso mesmo. Você gosta da série por causa dos zumbis? Eu gosto apesar deles. Mentira, a palavra não é apesar, mas independentemente deles.

Pois pra mim o que torna a série extremamente interessante é quando olhamos os zumbis como uma grande metáfora (ou desculpa) para a existência de um mundo despedaçado onde qualquer tipo de instituição já não existe mais. Um mundo onde não existem leis, não existe sociedade, não existe nada, apenas pessoas tentando sobreviver.

Estamos vendo nada menos que o estado de natureza descrito por Hobbes.

Thomas Hobbes, para quem não sabe, foi um filósofo inglês do século XVII. Embora tenha escrito sobre diversos temas ao longo de sua vida, ficou marcado particularmente por seu trabalho no campo da filosofia política, com seu livro O Leviatã. Com um discurso pomposo e repleto de analogias, o filósofo faz um grande diagnóstico da natureza humana, explicando então a necessidade de uma organização civil e as formas que tal organização deveria tomar. Para ele, o homem no estado de natureza (ou seja, sem a figura do Estado) é egoísta e mesquinho e movido puramente por suas paixões e por sua razão (é importante ressaltar essa racionalidade - não estamos falando de homens macacos agindo puramente por instinto). Na ausência de instituições, o homem seria livre para fazer o que bem entendesse na busca de seus próprios interesses. A liberdade, segundo Hobbes, seria a única condição natural inerente ao ser humano.

Isso se torna complicado no momento em que, embora haja variações óbvias quanto à força, inteligência, etc, os homens são iguais o bastante em seu poder para que nenhum possa triunfar totalmente sobre todos os outros. Dessa forma, surge o sentimento de insegurança e incerteza, em que a única decisão racional possível é a agressividade, seja para alcançar suas paixões e interesses, seja para evitar um possível ataque da outra parte.

O homem acaba sendo, assim, fundamentalmente malvado. Por um simples motivo: não existe nenhuma limitação (a.k.a. polícia) para o poder de violência dele e nem para o poder de violência dos outros. O homem é o lobo do homem.
Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.”
Soa familiar?

Pois em The Walking Dead é exatamente isso que estamos vendo. O problema não é mais a presença dos zumbis. Os personagens já sabem como lidar com os zumbis. Obviamente ainda são um perigo, mas não é mais o que os preocupa de verdade. O desafio é, na ausência de convenções e instituições, permanecer seguro da ameaça de outros homens. Não se pode mais confiar em ninguém, pois absolutamente nada impede que qualquer pessoa acabe com você na busca de seus próprios interesses.

E nesse sentido, é extremamente marcante a cena que define pela primeira vez esse conflito. Estão Rick, Glenn e Hershel em um bar, quando dois desconhecidos aparecem. Tranquilos, começam a bater papo, não há nada errado. "It's good to meet some new people", diz o Glenn, sincero. Os desconhecidos são amigáveis, divertidos, mas o tempo inteiro você não consegue deixar de sentir que tem algo errado. Existe um clima tenso no ar sem que nada de mais tenha sido dito, e isso é fruto da brilhante direção do episódio.


Até o momento em que eles começam a perguntar sobre onde os três personagens estão instalados, já que viram os carros vazios e sem pertences. Rick tenta desconversar mas falha. A tensão aumenta a um nível insuportável, e os personagens de repente já não se encontram tão tranquilos. É exatamente nesse momento que um dos desconhecidos simplesmente vai um pouco para o lado, bota o pau pra fora e começa a mijar. Ali mesmo, no meio do bar. Essa cena não foi colocada ali à toa. A mensagem para o espectador (e, por que não, para o Rick) é óbvia: não existem mais leis ou instituições, e a cara do Rick observando aquilo deixa claro que ele percebeu isso. Ninguém vai aparecer e prender o cara por mijar no meio de um bar, da mesma forma que ninguém vai vir e prender os dois caso eles resolvam matar todo mundo e ir atrás da fazenda. O resultado de tudo, como quem viu deve lembrar, é o Rick sendo badass pra caralho e atirando nos dois antes que eles atirassem nele, numa reinterpretação apocalípitica do gênero western.


Para Hobbes, a vida nesse estado de natureza é inviável e indesejável mesmo para o mais poderoso dos homens. É assim que surge o contrato social, outro termo fundamental na filosofia do inglês. Assim, os homens firmariam um contrato (dica, é uma metáfora, não há um contrato de verdade!) aonde abdicariam de sua liberdade (sua única condição natural, lembram?) em troca da segurança que deveria ser garantida pelo Estado (que passa a deter o monopólio da violência - ou seja, só o Estado pode se usar da violência como instrumento de repressão, desde que sempre com o objetivo de manter a segurança).

E em The Walking Dead começamos a ver isso, nos chamados grupos. Pois o mundo é perigoso demais para se viver sozinho, então as pessoas começam a se reunir em grupos onde, por mais precários que sejam, existe uma noção de justiça e ordem. O exemplo claro disso é o grupo com o qual o Daryl anda por alguns poucos episódios no final da quarta temporada. "I knew they were bad, but they had a code. It was simple. Stupid. But it was something. It was enough", diz ele. Longe de ter a burocracia de um Estado moderno, obviamente, mas existiam regras, comportamentos adequados e, principalmente, punições para quem não respeitasse isso (nesse caso, ser chutado até a morte pelos companheiros, lol).

Mas o mais interessante nisso tudo (pra eu que estudo relações internacionais especialmente), como não poderia deixar de ser, é o embate entre o grupo do Rick e o do Governor. Se transpormos a teoria de Hobbes para as Relações Internacionais, temos algo bastante complicado. Pois os Estados, deixando de lado essas paradas de ONU, direito internacional e o escambau que temos hoje em dia, estão fundamentalmente inseridos em um sistema anárquico. Da mesma forma que os indivíduos no estado de natureza, nada garante a segurança de um Estado. Não existe incentivos para a cooperação, não existe motivos para se confiar em um estado vizinho. A decisão racional é sempre ser agressivo.

Isso é lindamente exemplificado pelo Dilema do Prisioneiro (sou um entusiasta da teoria dos jogos, falei):

Dois suspeitos são presos pela polícia. A polícia não dispõe de provas suficientes para condenar nenhum dos dois, por isso faz a seguinte proposta a cada um deles: se um deles confessar e testemunhar contra o outro, o que confessou sai livre e o outro será condenado a 10 anos de prisão. Caso os dois testemunhem um contra o outro, ambos serão condenados a 5 anos de prisão. Caso nenhum deles resolva trair o parceiro e permaneçam calados, a polícia só poderia mantê-los por 1 ano.

Temos, assim, os seguintes outcomes possíveis:


É fácil perceber que o melhor outcome é você trair e o outro prisioneiro ficar em silêncio. Mas o que garante que ele vai fazer isso? Da mesma forma que você, ele está pensando que o melhor resultado pra ele é ele trair e você ficar em silêncio. A tendência racional é que ele traia. Colaborando com o outro prisioneiro você tem dois outcomes possíveis: 1 ano de prisão (caso ele também fique em silêncio) ou 10 anos (caso ele te traia). Traindo, você ou fica livre (caso o otário fique em silêncio), ou é condenado a 5 anos (caso ele também te denuncie). O que faz mais sentido? "1 ou 10" ou "0 ou 5"? Naturalmente, a solução lógica racional é a não-cooperação, mesmo que o outcome dos dois cooperando fosse muito mais vantajosa. O Equílibrio de Nash (sim, o mesmo do filme) dominante nesse caso ocorre quando os dois se delatam.

Voltando para The Walking Dead, é mais ou menos isso que vemos na interação entre o grupo de Rick e o do Governor. O outcome mais vantajoso é destruir o outro, já que além de ficar em segurança, você conseguiria mais armas, munições, suprimentos. Mas como é improvável que você consiga destruir o outro, o segundo melhor outcome seria a cooperação entre os dois. Mas, naturalmente, isso é impossível, visto que estamos em um estado de natureza anárquico e absolutamente nada garante que o outro lado vai te deixar em paz. Assim, os dois lados tem a tendência de se manter em uma guerra que só traz outcomes negativos (e quem terminou a quarta temporada sabe bem disso).

E embora o grupo de Rick aparente possuir uma maior pré disposição para o diálogo (apenas aparentemente - o Rick consegue ser bem implacável durante a série), o Governor surge como um líder totalmente absolutista, personificando a figura do Estado e sem o menor pudor de seguir a filosofia de Hobbes ao pé da letra. Assim, sua atitude é sempre ofensiva, e não apenas por ser um personagem malvado, mas por saber que Woodbury só poderá estar verdadeiramente em segurança quando não houver nenhuma ameaça à sua integridade, seja uma ameaça zumbi ou, principalmente, uma ameaça humana.

Pois a ameaça zumbi pode ser contornada. Mas a lição que The Walking Dead passa - sem deixar de ser um entretenimento de qualidade - é que o homem será sempre o lobo do homem.

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